O VELHO
Ela estava absorta. Perdida em seus pensamentos, observava a parede branca onde estava pendurado um enorme quadro com a imagem de Jesus, que parecia os estar encarando com seus olhos doces e a longa cabeleira a escorrer pelos ombros. Tinha os braços abertos numa atitude de acolhimento. Sentiu-se protegida.
Rosa acomodou-se melhor na cama, afofando o travesseiro e recostando-se nele. Pousou as mãos sobre o colo, coberto pelo lençol. Olhou o velho deitado a seu lado. Tinha o rosto enrugado pelos anos. A barba por fazer. Era magro e aparentava ter sido um rapaz alto, embora estivesse agora encurvado devido ao tempo. Dormia. Rosa sorriu. Amava aquele homem. Sessenta e quatro anos de casados. Fizeram no outro mês, ainda há pouco. Lembrava-se do começo: As modinhas cantadas para ela. Os bailes nos enormes salões iluminados. Tinha só dezoito anos quando o conhecera. Ele era um exímio dançarino e sabia conduzir como ninguém. Casara-se aos vinte e um. Quanto tempo...
Um pouco inquieta, revirou-se na cama, observando todo o quarto: a seu lado um criado-mudo. Sobre ele o abajur apagado. E um terço. Com ele rezava todas as noites. Pedia pelo seu velho, pelos filhos, pelos netos...
Pensou em Lourenço, o filho mais velho. Dera-lhe somente um neto, Eduardo. Tão sem juízo. Separou-se logo depois do nascimento do filho. E ela quase não via o bisneto... Não conseguia entender essa mocidade. “É que o amor acabou, Vó !”. – Como assim, acabou? O dela não acabava. Nunca.
A cortina estava entreaberta. A janela ficava um pouco acima da cama, no lado onde o velho dormia. Os primeiros raios de sol ameaçavam entrar pelo quarto, atravessando o vidro fechado. Bronquite. Não podiam abusar do frio da madrugada, ou senão era uma tosse só.
“Põe uma blusa, velho!”- dizia. E adiantava? Ele se limitava a resmungar qualquer coisa e virar para o outro lado, enquanto folheava as páginas do jornal. De ontem...
Um pouco abaixo da janela, junto à cama, ficava o outro criado-mudo. Sobre ele o rádio relógio. Há muito o velho não o punha a despertar. “Relógio pra quê?” – dizia. – “A gente acorda cedo mesmo, e depois não tem nada prá fazer...”
Horas... Que horas seriam ? Da posição onde estava não conseguia ver direito e não queria acordar seu velho. Fôra dormir tarde. Ficou colado à TV até altas horas. “Perder tempo assistindo jogo... Ganha alguma coisa?” – “Me deixa, velha...” – e ela ia dormir sorrindo. Futebol era a paixão dele. Ainda se
lembrava do dia em que o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai. Ele ficara tão abatido. Chorou como se fosse a coisa mais importante... “É só um jogo” – ela pensava. Mas não dizia nada. Não queria chateá-lo.
Por quê estava demorando tanto para acordar? Levantava quase sempre antes dela. Não conseguia ficar muito tempo na cama. “Maldito reumatismo” - praguejava. “Já tomou seu remédio, velho ? “ – “Já, velha. Já!”
Rosa distraiu-se pensando nos outros filhos. Juliana era a segunda. Casou-se logo depois de Lourenço. Tiveram dois filhos: Paulo e Catarina. Eram carinhosos com eles. Juliana ficou viúva há uns dois anos e seus netos sofreram muito. Mas a vida é assim... Uns vem, outros vão...
Sentiu um calafrio. Não gostava muito de pensar na morte. Não tinha medo de morrer, mas a idéia de ficar sozinha a deixava apavorada. Procurou com os olhos alguma coisa para distrair a mente. Viu o guarda-roupa na parede ao seu lado. Mogno. Ela escolhera junto com o velho, havia muito tempo. “Não se fazem mais móveis assim hoje em dia” - pensou.
De volta aos filhos: Joana era a próxima. Casou-se e mudou para o sul. Vinham visitá-los, às vezes. Ela, o marido e os dois filhos. Quer dizer, no começo vinham, mas agora que os meninos estavam crescidos, não queriam mais saber de ver gente velha. Pedro, seu genro, demonstrava uma certa má vontade com eles. Rosa não se importava. O velho é que não tinha muita paciência. Sempre arrumava motivo para discussão...
Janaína, a única solteira. Tinha já passado dos cinqüenta... Vivia sempre ocupada, envolvida com o trabalho. Era gerente de uma loja de artigos finos. A loja tomava quase todo o seu tempo. Mas, de todos os filhos, era a que mais lhes dava atenção. Vinha ao menos duas vezes por semana ver se estava tudo bem, e mesmo quando não vinha, ligava. Rezava muito por ela, para que encontrasse alguém e se casasse. Para ser feliz como ela era com o velho. Olhou-o de novo com carinho. Continuava imóvel. Estranho...
Rosa voltou seus pensamentos para o caçula: Isaías. Morava com uma moça quase vinte anos mais nova. Ele estava agora com ... quarenta e oito, talvez? Ela deveria ter uns trinta, se muito. Nunca aprovara aquele namoro, mas quem era ela para dar palpite? Só uma velha... “Deixa o menino em paz” – dizia o velho. “Ele sabe cuidar da vida dele...”. Os homens têm uma certa cumplicidade. Principalmente quando se trata de mulheres mais novas... e bonitas!
Ah! Seu velho... Quantas alegrias passaram juntos. Lembrava-se de uma vez quando, já maduros, foram passear na praia de mãos dadas. Um grupo de jovens que passava por eles, ao verem o relógio em seu pulso perguntaram :
* Aí tia, que horas são ?
Imediatamente, ele virou-se para os garotos dizendo:
* Tia? Vocês tem coragem de chamar essa “gata” de tia ?
Ela ficou rubra na mesma hora. Velho assanhado. Tantos momentos passados juntos... Tanto carinho! Muitas brigas também. Ô velho teimoso, parecia uma mula. Quando empacava não tinha jeito. Mas ela o amava...
“Por quê esse homem não acorda, meu Deus?” – Pensava consigo mesma. “Vamos, velho. Tá na hora.”. Sacudiu-o ligeiramente. Nenhum sinal.
“Esse homem tá de brincadeira comigo...” – Ele adorava lhe pregar peças. Sabia que ela ficava brava e isso o divertia ainda mais. Como daquela vez em que ele se deitou ao contrário na cama. Colocou os pés no travesseiro e a cabeça nos pés. E ela conversando no escuro com os pés dele. Só percebeu depois de muito tempo, quando ele desatou a rir. Era uma criança.
Uma outra vez lhe dera também um tremendo susto, mas sem querer. Foi quando teve o infarto. Duas pontes de safena e uma mamária. Ele quase se foi. Rosa ficava uma fera quando ele dizia :
* Velha, quando eu morrer você vai arranjar outro ?
* Se você se for, eu vou junto velho... – retrucava ela irritada.
Começava a se inquietar. Colocou a mão sobre a mão fria do velho. Rosa começou a respirar com dificuldade. Muitas imagens vinham à sua mente: lembranças de quando era criança. Lavando roupa à beira do rio. Sua mãe chamando-a para o jantar. A luz dos lampiões. O batizado dos filhos. Lembrava-se de cada um. A lua de mel passada na praia. O nascimento do seu bisneto. Queria vê-lo de novo. As imagens se misturavam deixando-a completamente atordoada.
Sentiu uma forte dor no peito. Estava suando. Enxugou os olhos úmidos com o lencinho bordado que deixava ao lado da cama, no criado mudo. Engolindo o choro, Rosa abaixou-se até quase encostar no velho e sussurrou-lhe com a voz rouca:
* Dorme, meu velho. Pode dormir. Você deve estar cansado...
Deu um beijo em sua testa gelada. Sentia o braço formigar. Cansada pelo esforço, deixou-se escorregar pelo travesseiro até estar novamente deitada. Virou a cabeça para um dos lados e também dormiu. Igual ao velho.